sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O Chute na Santa (1)

Novenário reascende a polêmica sobre uso religioso da “imagem”

Leandro Altheman

Achei oportuno tratar deste tema por dois motivos: o primeiro, por conta do período de novenário, que mobiliza a nossa região, e segundo pelos crescentes ataques entre a Rede Globo e a Record. Quisera eu poder dizer que pelos menos um dos dois vale alguma coisa, mas mentir em blog é uma coisa muito feia.

Durante as festas religiosas que marcam o calendário cristão, vemos surgirem, seja nas ruas das cidades, ou nas muitas “esquinas virtuais” da internet, inúmeros debates sobre se determinadas práticas religiosas estariam contra ou a favor daquilo que dizem as escrituras.
Desde já, quero fazer uma ressalva, de que meu conhecimento sobre os testamentos é muito pequeno para travar um debate deste nível com base nos seus versículos e parágrafos.
Assim sendo farei uma análise dentro de minhas capacidades, mais ponto de vista histórico e social, do que propriamente religioso.

Em primeiro lugar, o ideal de tolerância e respeito religioso é algo que deve estar encravado profundamente nos corações e mentes de qualquer pessoa que se diga democrática. Talvez isso seja uma herança dos meus tempos de Marinha, onde desde cedo são incutidos nos mais jovens pupilos, o respeito à religião dos outros. Uma organização que navega por um sem-número de países: cristãos, islâmicos, budistas, hinduístas, shintoístas, ou qualquer outra vertente religiosa, não se pode dar ao luxo de ter problemas com seus anfitriões por conta de picuinhas dogmáticas. Na diplomacia internacional, nada justifica o desrespeito à fé alheia. Uma regra que poderia ser cumprida também entre nossos vizinhos.
Um papel que infelizmente a cristandade não cumpriu ao tentar esmagar a fé dos povos indígenas e africanos, impondo a sua própria.

Mas voltemos à questão das imagens

O episódio ocorrido na década de 90, quando um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus chutou publicamente a imagem de Nossa Senhora, ultrapassou as esferas do catolicismo, causando repúdio no mundo todo. Felizmente o pastor obteve a punição necessária de sua própria congregação. Há outras maneiras de expor suas idéias sem agredir o sentimento dos outros.

A agressão às imagens é fundamentada por aqueles que a defendem com base na proibição explicita no velho testamento com relação à idolatria.

É justamente neste ponto que gostaria de fazer uma ressalva. Historicamente a chamada “idolatria” é um fenômeno que difere muito das atuais procissões. A “idolatria” histórica, trata da necessária imolação de animais, ou nem alguns casos, até de seres humanos, em homenagem à determinada divindade.

As procissões me parecem um fenômeno diferente. Mesmo os hebreus, fiéis guardadores da lei mosaica, seguiram em procissão a chamada “arca da aliança”.
Por outro lado, elas aparecem com muita freqüência no mundo greco-romano, com um caráter cívico-religioso capaz de mobilizar as massas. Um aspecto da vida cívica que foi adaptado pela cristandade com a mesma finalidade: angariar rebanhos em torno de uma fé comum.


Durante o Império Bizantino, é amplamente conhecido o episódio do movimento iconoclasta, quando fiéis mais exaltados passaram á destruir obras artísticas de cunho religioso. Terminaram massacrados e até hoje o mundo pode testemunhar as maravilhas da inigualável arte bizantina.

Há uma aspecto histórico fundamental que é preciso ter em conta: durante a Idade Média, período de maior domínio da igreja sobre a vida dos cidadãos, a maior parte das pessoas era analfabeta. As letras eram o privilégio de poucos escolhidos, e mesmo nobres e reis demoraram a ter acesso a este conhecimento quase “mágico”.
Como resultado, a igreja buscou outras maneiras de transmitir a sua mensagem. Assim, o apelo visual era a única saída. Como resultado, temos hoje algumas das maiores obras de arte da humanidade: imensas catedrais góticas e seus maravilhosos vitrais, contando com figuras uma história que não poderia ser visualizada de outro modo pelos fiéis analfabetos.

Do período gótico, passamos ao renascimento, e temos então as maravilhas de Rafael, Da Vinci, Michelangelo, entre tantos outros de não menor importância.
É neste ponto que surge o segundo cisma da Igreja Católica, dando origem ás reformas protestantes de Martinho Lutero.

Neste ponto gostaria de citar Nietzche, filósofo alemão que é certamente, um dos maiores críticos do cristianismo. Para Nietzche o renascimento marca o momento de libertação dos conceitos dogmáticos da cristandade iniciados 1.500 anos antes. Embora patrocinados muitas vezes pela própria igreja, as obras deste período revelam uma importante transgressão: o homem como medida de todas as coisas.
Foi graças a esta transgressão que tivemos o desenvolvimento da sociedade moderna, da ciência, do estado laico de tantas liberdades que hoje usufruímos e que custaram tão caro a homens como Galileu e Giordano Bruno.

Para Nietzche, por traz da motivação de Lutero está a inveja dos alemães em relação à imponência de Roma. Na época, o conjunto de principados, ducados e condados que nem sequer compunham uma nação, nada mais eram do que uma obscura província rural, iletrada e atrasada do Império Romano-Germânico.
A adoção de um sistema religioso mais sóbrio, seria portanto, uma escolha mais de acordo com os elementos da cultura alemã.

Não por acaso, não são conhecidas grandes obras de arte de autores protestantes.

Na cultura islâmica, ao contrário, onde o alcorão veta o uso de imagens da natureza (para eles seria pecado a reprodução de algo criado por Alá), os artistas engenhosamente criaram fabulosas mesquitas fazendo uso apenas de elementos da geometria e versos do alcorão em belíssimas caligrafias.

Como ficariam as proposições dogmáticas que repudiam a idolatria diante de uma análise do uso explicitamente religioso da imagem na televisão pelas chamadas igrejas neopentecostais? Nada soa mais hipócrita que o aparente desprezo à imagem tão eloquentemente pregado pelos tele-pastores. A excessão da imolação de vítimas, há mais elementos de uma verdadeira idolatria em torno destes distintos senhores, do que nas procissões em todo país. Uma massa de fiéis atônitos, deseperados, prosta-se na frente da televisão, à espera de um milagre para suas vidas infelizes. Há um perigoso culto à personalidade do tele-pastor e a intensidade do vínculo "religioso" criado entre o telespectador e o artista na tela, supera de longe as melhores novelas. A disputas entre as duas maiores emissoras do país acontecem nas telas, ela, a TV é o novo anfiteatro romano onde se degladeiam hoje as maiores potencias, suas armas: a imagem. Ao final, são as conciencias que são devoradas pelos leões que dividem o butim de telespectadores e prestígio político.

Ainda quero abordar mais detalhadamente este tema, em uma próxima postagem assim que "Cronos", o terrível deus do tempo, permitir.

E para você que chegou até o fim, meus sinceros parabéns...

Nenhum comentário:

Postar um comentário