terça-feira, 15 de maio de 2012

O Corpo dentro da visão ayahuasqueira tradicional


“Fique dentro de seu corpo”, alerta o xamã para o seu iniciado no filme “Blueberry” (assista trecho da "miração"). 

A frase não é nenhuma coincidência e nem está solta ao acaso no meio do filme. Trata-se da reprodução de um dos ensinamentos mais caros à visão tradicional ayahuasqueira. 

Bem, e o que a frase estaria fazendo em um filme western?

Ocorre que o seu diretor, o holandês Jan Kounen esteve entre os Maestros Shipibo-Conibo no Peru, sendo inclusive o autor do documentário “Other Words”, sobre a tradição ayahuasqueira deste povo .
Quando Jan decidiu aceitar o projeto de adaptar para o cinema o quadrinho “Blueberry”, transformou temas tradicionais do cinema western como a busca ao tesouro e o duelo entre mocinho e bandido em algo mais “ espiritual”. O tesouro passa a ser o próprio conhecimento das plantas de poder (no filme elas são retratadas como sendo peyote, planta de ocorrência no México e EUA). O duelo, por sua vez é retratado como uma luta entre a luz e a sombra que ocorre, na verdade, dentro do próprio individuo.

O Corpo

Estive no ano de 2010 na Aldeia de Pahoyan no Ucaially peruano. A comunidade Shipibo-Conibo tem cerca de 2 mil habitantes. Participei de cerimônias ayahuasqueiras tradicionais, onde pude constatar um pouco desta visão tradicionalista da ayahuasca, que difere bastante das religiões ayahuasqueiras do Brasil.
As cerimônias foram dirigidas pelo Maestro Dom Miguel e assistidas pelos “abuelitos” (anciãos que tem o papel de “ver” possíveis problemas, fazem uma espécie de “guarda” do maestro) e “mamas”(idosas que lidam mais diretamente com os problemas emocionais e familiares).
A ênfase do trabalho é no corpo e não o “espírito”.
Dom Miguel explicava que as chaves para os “mundos” ou “realidades” estava no próprio corpo. Para tanto, utilizam-se de diferentes medicinas, como por exemplo o Shiric Sanango, entre outras.
O objetivo do trabalho é livrar o corpo de suas mazelas, travas e cargas emocionais, ou simplesmente “doenças”. No conceito de “doença” estão os padrões repetitivos de respostas que impedem o indivíduo de exercer em plenitude a sua felicidade.
Há sempre o alerta (implícito ou explícito) de “prestar a atenção ao corpo”. Deste modo, aprende-se a compreender o corpo não apenas como um “templo” do espírito, mas como a maior e mais verdadeira escola de que dispomos.
O acesso aos universos “espirituais” (não ouvi eles usarem esta expressão “espiritual”, são simplesmente “universos”, ou mais comumente “mundos”) se dá através de um corpo equilibrado e em sintonia.
Ao invés de procurar “libertar o espírito da matéria”, como tratam algumas linhas ayahuasqueiras, o objetivo é presentificar cada vez mais o espírito no corpo. Tornar o corpo alerta, vivo e presente, capaz de responder a todos os desafios deste e de outros mundos.  

Espiritismo na ayahuasca

Nas religiões ayahuasqueiras brasileiras, a influência muito forte do espiritismo kardecista colocou as coisas sob uma nova ótica, onde o “espírito” é superior ao corpo. A matéria deve ser “vencida” pelo espírito. Nesta visão, os desejos e necessidades do corpo são vistos muita vezes como “adversários” a serem derrotados pela ordem moral do espírito.
Visão que se afasta da concepção tradicional ayahuasqueira.
O resultado pode ser visto em muitas igrejas: corpos debilitados ou com pouco tônus muscular. Resultado de uma visão de mundo cristã-ocidental que privilegia a ideia de um paraíso eterno pós-terreno, onde o corpo é de pouca utilidade.

Corpo e Sangue

A visão tradicional da ayahuasca recoloca o corpo em seu devido lugar  sagrado e como tal, sagrados são a terra, o fogo, a água e o ar que o compõe.
Sobre o pós-vida, o Músico e Xamã peruano Alonso Del Rio em seu livro “Tawantinsuyu” resume em poucas palavras o que é a visão ayahuasqueira e xamânica. “Temos uns poucos anos para dar estabilidade suficiente para nossas almas, para que elas possam subexistir após a morte do corpo físico”.

Em última análise, o que permite a chamada “vida pós-morte” nada mais é do que também um corpo. A consciência precisa de um habitáculo que na verdade, também é um corpo. 

Imagens: Desenhos de mirações do atrtista plástico ucayalino Pablo Amaringo.
Foto: Dom Miguel Ochavano e sua esposa Mama Lilia. 

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