segunda-feira, 29 de abril de 2013

Kambô e Cruzeiro do sul merecem respeito

Paulo Sérgio Bernarde *

Em 2005 quando era professor da Facimed em Cacoal recebo um e-mail do Ministério do Meio Ambiente me convidando para participar de uma reunião em Brasília sobre o Kambô (Vacina do sapo). A Ministra naquela época (Marina Silva) estava preocupada com o risco de biopirataria caso ocorresse a descoberta de algum medicamento a partir do veneno de uma espécie de Anfíbio (Phyllomedusa bicolor) que é utilizado há séculos por algumas etnias (especialmente da Linguagem Pano) no Acre.
O que eu sabia sobre o assunto naquela época é o que muitos hoje ainda pensam: Ah, os indígenas tiram o veneno de um anfíbio, aplica na pessoa e ela fica doidona! Hoje sei que muitos estavam equivocados e que é algo diferente e muito mais amplo sobre isso. Pra começar ninguém "chapa o coco não!".
Chegando em Brasília na reunião conheci vários pesquisadores, entre eles dois médicos do Instituto de Coração da USP e um deles já tinha tomado a tal vacina duas vezes. Um bioquímico que tinha isolado alguns peptídeos de algumas espécies de Phyllomedusa e que estas moléculas apresentavam "in vitro" (fora do corpo de um animal) em meio de cultura de células humanas propriedades antibióticas contra a Leishmaniose, Malária e Doença-de-Chagas. Li artigos a respeito que alguns peptídeos destes anfíbios do Gênero Phyllomedusa apresentaram propriedades antibióticas contra a bactéria Pseudomonas aeruginosa (Uma das mais resistentes do Planeta e muito associada com casos de infecção hospitalar!) e também impediram a infectividade do vírus HIV em células humanas sem destruí-las (Isso "in vitro").
Nossa, realmente existe um potencial farmacológico para ser explorado em benefício da humanidade e temos que correr com isso para que o saber tradicional (Indígenas!) não sejam passados para trás por alguma multinacional.
Nessa reunião ouvi falar pela primeira vez de Cruzeiro do Sul (Nem passava pela cabeça que viria morar aqui um dia!).
Tem muito mais coisa para escrever aqui, a história é bem mais do que isso... Outro dia quem sabe escrevo sobre isso!
Mas, vamos falar da estrada até agora:
"Meninos de prédio" aparecem para distorcer o que este anfíbio e essa medicina tradicional representa para os povos do oeste da Amazônia?! 
Pesquisadores que nunca experimentaram ou pesquisaram isso! Pessoas que se auto-intitulam Xamãs nos centros urbanos fora da Amazônia! Contrabandistas que traficam o veneno em palhetas para fora do Acre e para fora do país! Jornalistas tendenciosos e totalmente parciais que não apresentam todos os fatos! O Kambô não é a cura para todos os males e quanto mais distante do seu ponto de origem mais distorcido e distante dos objetivos e interesses se transforma sua aplicação!
Existem Leis, Ciência, Pesquisadores, Cultura, Povos e uma Espécie animal que merecem Respeito!
Isso ainda continua...

Paulo Sérgio Bernarde é herpetólogo 

Obs: O texto é uma reflexão espontânea do autor, retirado das redes sociais mediante autorização do mesmo.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Descriminalização das drogas


Antonio Prata*

Dos 15 aos 20 e poucos anos, fumei maconha pelo menos uma vez por semana. Confesso que nem achava muito bom, era o típico cara que fuma só porque está todo mundo fumando; ficava mais confuso do que relaxado, sem saber se punha as mãos nos bolsos ou cruzava os braços, se ia ouvir Pink Floyd no escuro ou comer melancia com ketchup. Finda a adolescência, percebi que a cannabis não era mesmo a minha e parei. Não tive que tomar nenhuma atitude drástica, reunir força de vontade, buscar ajuda: simplesmente deixei de usar e não senti a menor falta.
Não estou dizendo que maconha não vicia. Entre os vários amigos meus que a consomem regularmente um é viciado. É advogado tributarista, casado, pai carinhoso e fuma umas duas vezes por dia. Compare-o a um alcoólatra e fica claro que, mesmo no pior cenário, os males da maconha são menos graves do que os de uma droga lícita.
Não estou afirmando, tampouco, que a maconha não faz mal. Certamente esse amigo que fuma diariamente tem mais chances do que eu de, no futuro, desenvolver um câncer de pulmão --e mais dificuldade para, de manhã, se lembrar de onde colocou as chaves--, mas a escolha é dele. O pulmão e as chaves, também.
A vida é muitas vezes chata, é quase sempre dura, é definitivamente curta. Por isso uns bebem, outros fumam, ingerem mais gordura saturada do que recomenda a Organização Mundial da Saúde e há até quem salte de asa-delta, sem que o Estado se meta em suas vidas.
Tudo isso posto, fiquei muito contente, semana passada, ao encontrar nos jornais, entre Felicianos e Malufs, vans e panelas de pressão, a notícia de que sete ex-ministros da Justiça encaminharam ao STF uma carta recomendando a descriminalização do uso de drogas.
Que a maconha deveria ser legalizada já, plantada e fumada por quem quisesse, não tenho a menor dúvida. Quanto às outras drogas, é preciso analisar bem como proceder, para que não se resolva apenas o lado do consumidor do asfalto, mantendo a tragédia do tráfico nos morros e periferias.
Felizmente, além dos ex-ministros, há muita gente gabaritada pensando em como desatar esse nó. Ano passado, foi criada a Rede Pense Livre (migre.me/efd02), um grupo apartidário, com membros de diversas áreas --da antropologia ao mercado financeiro, da direita e da esquerda; gente de terno, de piercing, de terno E de piercing--, cujo objetivo é rediscutir a atual política brasileira referente às drogas --e mudá-la. Parte da premissa de que a estratégia atual, a guerra, não funcionou e propõe a descriminalização.
O mal que a "guerra às drogas" causa à sociedade é infinitamente superior aos danos que as substâncias causam a seus indivíduos. Hoje, mais de 130 mil pessoas (1/4 da população carcerária brasileira) estão na cadeia por alguma relação com entorpecentes; são jovens, em grande parte, cujos futuros o contribuinte paga caro para arruinar, mantendo-os atrás das grades.
Deixemos os presídios para quem mata, quem estupra, quem desvia dinheiro público e deposita nas ilhas Jersey: não para quem precisa de tratamento médico ou nem isso, quem só quer esquecer um pouco dos problemas, ouvir Pink Floyd e --por que não?-- comer melancia com ketchup.

Antônio Prata é escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (editora 34). Escreve às quartas na versão impressa de "Cotidiano".

Publicado na Folha de S.Paulo

sábado, 20 de abril de 2013

“Bêbados e Preguiçosos”


A visita do governador Tião Viana à Terra Indígena Katukina do rio Campinas neste dia 19 de abril animou o velho recalque e tem gente repetindo o velho mantra de que os índios são “bêbados e preguiçosos”. Principalmente porque Tião Viana fez a entrega de equipamentos para produção e anunciou um programa de habitação para as aldeias. Não vou entrar no mérito de que estes investimentos são apenas parte do cumprimento do plano de mitigação da BR 364 e não fruto de alguma bondade humanista ou piedade cristã.
katukinas e gov
Vou me ater ao fato de que enquanto a nossa sociedade cruzeirense, com mais 80% de DNA indígena, continua se olhando no espelho e dizendo: “Não gosto de índio. São bêbados e preguiçosos”.
Será que é por isso nossas ruas e esquinas estejam atulhadas justamente de bêbados e preguiçosos?
-Poxa, mas "eles" mataram um taxista ?
O fato é que quem matou o taxista estava sobre efeito de álcool. Já noticiamos dezenas de crimes como este cometidos por não-índios e nem por isso dissemos que "nós" tenhamos matado um taxista. Aliás, cinco taxistas foram mortos nos últimos dez anos em Cruzeiro do Sul. Os outros quatro o foram por cruzeirenses não-indígenas. ( Só para informar, pelo crime, Sérgio Katukina foi condenado há 24 anos de prisão em regime fechado).
Não dizem as escrituras: “E por que atentas tu no argueiro que está no olho de teu irmão, e não reparas na trave que está no teu próprio olho?”.
Nossa sociedade parece ser incapaz de enxergar suas próprias falhas e contradições. Apontá-las na direção de outra sociedade: periférica, invadida e despida de seu modo de vida tradicional, parece trazer algum conforto para quem não sabe o que fazer com seus próprios bêbados e preguiçosos. E ainda assim, o time que representa a cidade usa (sem licença) o nome dos bravos “Náuas” – povo não extinto, mas renascido no Igarapé Novo Recreio. Se soubessem a panema que isso dá...
Será que vale a pena perder meu precioso tempo contando que em uma aldeia se levanta às quatro horas da manhã? Que antes da aurora já se busca a caça ou o peixe? Que, as onze (quando finalmente chega o técnico de produção na aldeia) já se almoçou e já se está na hora da ciesta?
Será que vale a pena citar que enquanto nossa pouco produtiva elite urbana (a maioria funcionários públicos) se alimenta do suor dos trabalhadores rurais, os índios comem a macaxeira que eles mesmos plantam?
Será que queremos que eles produzam soja para alimentar porcos na China? Quanto progresso!
Será que vale a pena lembrar que se hoje Cruzeiro do Sul é referência nacional deve-se em grande parte por ser o principal centro de difusão do kambô ou vacina do sapo? Agradeçam aos katukinas por isso!
Ou talvez deva lembrar os “Tempos Modernos” de Charles Chaplin, em que denuncia a sociedade automatizada e desumanizada da revolução industrial que transformou homens em peças e engrenagens?
Porque será que assusta e incomoda tanto a visão de um povo que sobrevive em pleno século XXI da caça e da pesca, que mantém sua identidade em meio à globalização, e mais: que parece encantar cada vez mais às novas gerações urbanas, estas cada vez mais desencantadas do mito do progresso, consumo e desenvolvimento sem limites que nos coloca diante da possibilidade da própria extinção?

Leandro Altheman

terça-feira, 9 de abril de 2013

Aliança Evangélica repudia mau uso de texto bíblico no suposto caso da "Maldição dos Africanos"



Nota de Esclarecimento e Repúdio Quanto a Suposta Maldição sobre Negros e Africanos

A Aliança Evangélica vem a público para repudiar o uso inadequado das Escrituras Sagradas, a Bíblia, juntamente com as interpretações e afirmações daí decorrentes, especificamente as feitas quanto a supostas maldições existentes sobre africanos e negros.

Afirmações desta natureza são fruto de leitura mal feita de parágrafos bíblicos, tomados fora do seu contexto literário e teológico, que acabam por colaborar com os interesses de justificar pensamentos e práticas abusivas, contrárias ao espírito da Palavra de Deus, cujo foco está na Justiça, na Libertação e na promoção da Vida e Dignidade Humana.

O texto em questão, que tem servido de pretexto para declarações insustentáveis, tanto em púlpitos, redes sociais, na tribuna do Parlamento e até protocoladas junto à Justiça Federal, sob o manto da imunidade parlamentar, versa sobre o significado da passagem bíblica encontrada no Livro de Gênesis capítulo 9, versos 20 a 27.

Nessa passagem Noé, embriagado, despe-se e assim é surpreendido por seu filho Cam que, ao invés de manter a discrição e o respeito devidos ao pai, o anuncia aos seus irmãos; estes se recusam a ver o pai nesse estado e, sem olhar para ele, cobrem-no com uma manta. Desperto Noé, ao saber da postura de seu filho Cam, amaldiçoa seu neto Canaã, filho de Cam, destinando-lhe a servidão.

O equívoco em questão dá a entender que a maldição proferida pelo patriarca bíblico contra Canaã, seu neto e filho de Cam, atinge os seres humanos de tez negra que habitaram, originariamente, o continente africano, o que explicaria os vários infortúnios em sua história passada e presente, culminando no longo período em que foram feitos escravos no Ocidente; e que o ato de Cam em ver a nudez de seu pai, mais do que um desrespeito, indica um ato de violação sexual por parte de Cam.

Queremos salientar enfática e categoricamente:

Primeiro, Cam teve outros filhos: Cuxe, Mizraim e Pute, e somente Canaã foi amaldiçoado.

Segundo, embora o comportamento inadequado descrito no texto bíblico tenha sido o de Cam, filho de Noé, o objeto específico da maldição foi Canaã, o neto de Noé. [Segundo Orígines, um dos pais da Igreja, do sec. III, Canaã foi quem avisou seu pai sobre a situação do seu avô, publicando o que deveria ter mantido sob reserva]. Amaldiçoar, no senso bíblico, não determina a história, mas descreve a consequência da quebra dum princípio estabelecido pelo ato desrespeitoso; portanto, significa a percepção de efeitos e desdobramentos de um comportamento específico. Ou seja, a postura de Cam e de seu filho Canaã estabelece um padrão comportamental que resultaria numa situação de inversão paradoxal, onde alguns dentre os descendentes de Canaã se tornariam dominados e serviçais dos seus irmãos.

Terceiro, Canaã, neto de Noé, foi habitar e estabeleceu-se na região a oeste do rio Jordão, até a costa do Mediterrâneo (sudoeste da Mesopotâmia), onde os descendentes de Canaã desenvolveram práticas absurdas, inclusive o sacrifício de crianças, e não no continente africano!

Quarto, é de entendimento entre os teólogos especialistas no Velho Testamento que a maldição profética de Noé sobre Canaã foi cumprida quando da conquista da região povoada pelos descendentes de Canaã, os cananeus, por parte dos filhos de Jacó, sob o comando de Josué há mais de três milênios.

Quinto, a maldição proferida sobre Canaã pelo seu avô Noé significou uma percepção e discernimento sobre uma tendência comportamental de um grupo humano, antevendo o resultado de uma corrupção cultural e civilizatória específica e localizada, e em consequente servidão, e de modo nenhum faz referência à cor da sua pele.

Sexto, não há nada, absolutamente nada, nem neste texto bíblico em foco nem na Escritura como um todo, que indique qualquer maldição sobre negros e africanos, e muito menos algo que justifique a escravidão.

Sétimo, o texto bíblico precisa ser lido em seu contexto imediato e considerado à luz da totalidade da Escritura, como saudáveis práticas de interpretação bíblica nos ensinam. De acordo com o próprio capítulo 9 de Gênesis, verso 1 e seguintes, é indicado que o desejo de Deus e sua promessa visam abençoar, dar vida, alimento e todo o necessário para o desenvolvimento de todos os descendentes de Noé, seus filhos e de toda a família humana. A declaração divina de abençoar a Noé e seus descendentes é firme e abrangente, e não pode ser contestada ou reduzida pela declaração relativa e descritiva de Noé a respeito de seu neto.

Oitavo, Deus reafirma o desejo de abençoar a toda a humanidade, a todas as famílias da terra, raças e etnias no episódio descrito na sequência da narrativa bíblica, quando da vocação de Abrão (Genesis 12), intenção que tem seu ápice e culminância na pessoa, vida e ministério de Jesus e continuado em curso na Igreja. Em Cristo, toda maldição é destruída e uma Nova Criação é estabelecida, sendo chamados a participar deste novo concerto todas as nações, etnias, raças, povos e famílias de todas as terras e da Terra toda, sendo revogadas assim todas as maldições e oferecida salvação a todas as pessoas.

Nono, a alegada violação sexual de Cam a Noé não é sustentada pelo texto. A citação do texto da lei de Moisés que chama a violação de descobrir a nudez não dá suporte a tal alegação, uma vez que os verbos usados são diferentes na raiz e no significado: no primeiro caso, trata-se de observação a distância; e, no segundo caso, trata-se de ato deliberado contra outrem.

Décimo, toda vez, na história, que esse texto foi aventado a partir dessa hipótese vulgar, tratou-se de ato de má fé a serviço de interesses escusos, seja quando usado para justificar a escravidão de ameríndios no Brasil colonial, seja quando usado para justificar a escravidão dos africanos de tez negra, seja quando utilizado para a elaboração de sistemas legais de segregação social como o que ocorreu nos Estados Unidos, seja quando usado para justificar a política nefasta e mundialmente condenada do apartheid.

Tal leitura equivocada da Escritura corre o risco de ser vista como suspeita de esconder outros interesses de natureza política, econômica e de dominação social e religiosa. Não há nenhum apoio bíblico para defender qualquer maldição sobre negros ou africanos, que fazem parte, igualmente e em conjunto, da única família humana.

Lamentamos o equívoco provocado por tal vulgarização do texto bíblico, bem como a banalização quanto ao conteúdo de nossa fé, assim como repudiamos qualquer tentativa, intencional ou não, de uso inadequado do texto para quaisquer fins que não o de promover a vida, a libertação e a justiça, como a própria Escritura expressa muito bem.

Brasil, 07 de abril de 2013

Aliança Cristã Evangélica Brasileira