segunda-feira, 20 de maio de 2013

A religião em “Crônicas do Gelo e do Fogo” - Parte 1 - Os Sete Deuses de Westeros


Leandro Altheman

Neste (nem tão) breve ensaio, pretendo discorrer sobre as principais religiões retratadas na obra ficcional de George R.R. Martin e a partir do simbolismo presente no seu universo fantástico, demonstrar que os elementos revelados encontram-se em algumas das religiões do passado e do presente da humanidade.
O tema atraiu-me a partir de quando percebi que boa parte da trama se desenrola a partir da cosmovisão de cada personagem. Ou seja, em sua obra a religião e a religiosidade, ou a falta dela desempenham um papel fundamental a determinar as respostas de cada personagem-narrador. Esta percepção pode ajudar-nos a entender as diferenças fundamentais entre algumas das principais cosmovisões em nosso próprio mundo.

Começaremos pela religião mais difundida em Westeros: Os Sete.

Os Sete

Os sete nos são incrivelmente familiares e talvez o porque disto esteja claro para alguns de seus leitores, mas não para todos.
Os Sete representam os principais arquétipos que regem a humanidade. Podemos dizer que esta fé simboliza uma segunda etapa na cosmovisão da humanidade. Precedida pelo pan-teísmo natural (a qual falaremos logo adiante) e sucedida pelo monoteísmo dualista, a religião arquetípica foi quem dominou  a cosmovisão da antiguidade.
Egípcios a ensaiaram sob a forma seu deuses antropomórficos, inicialmente espíritos tutelares ligados à geografia do próprio Nilo, a medida em que se organizava o seu espaço político, seus deuses também se organizavam para dar forma à cosmovisão não mais de um grupo, povoado ou cidade, mas de uma nação. Com o tempo, cada um destes deuses passou a desempenhar um papel arquetípico representando os ciclos de vida, morte e renascimento, assistido pelo povo egípcio às margens do Nilo e reinterpretado como parte da encenação cósmica do próprio universo.
Processo semelhante se assistiu no lado asiático do crescente fértil. A medida em que cidades povos e reinos  eram integrados, seus espíritos tutelares passaram a constituir um panteão, dando assim uma fé comum aos povos da mesopotâmia. Se é correto afirmar que um império é feito com armas, é tão correto afirmar que o que mantém coeso é a sua cosmovisão, destinada a amoldar os anseios, preocupações e destinos de cada indivíduo ao destino de sua própria nação.
Mais foi com os gregos que os deuses ganharam forma e conteúdo arquetípicos que nos são mais familiares. A cosmovisão engendrada pelo mundo helênico e adotada pelos romanos permanece viva em nosso século, sem que muitas vezes nos demos conta disso. A trindade Zeus-Poseidon-Hades ainda é reverenciada ainda que de forma distinta. Ares continua a tumultuar os destinos da humanidade, mesmo que a ordem de “ataque preventivo” parta do mais pio dos cristãos. Felizmente, Afrodite continua também a provocar os suspiros de homens e mulheres apaixonados e Atena, a nos inspirar a sua sabedoria. Sem é claro esquecer do veloz Hermes que ganha asas digitais para levar as mensagens de um lado a outro do planeta e ainda hoje é reverenciado por comerciantes e contadores sem que se deem conta disso.
George R.R. Martin captou a essência fundamental do politeísmo arquetípico e os representou maravilhosamente sob a forma dos Sete.
O Pai, A Mãe, O Guerreiro, O Ferreiro, A Velha, A Donzela e finalmente O Estranho capta
m os movimentos essenciais da alma humana quando ele se volta ao desconhecido em busca de  justiça, misericórdia, força (para lutar ou para trabalhar), sabedoria, amor...
 E como uma verdadeira fé arquetípica, também não deixa de fora aquilo que não se compreende e nem se deseja, mas que faz parte da realidade: O Estranho.
Digo sem medo de errar que uma religião que contemple o estranho gosto da morte, a risada louca dos deuses, o caos incompreensível aos olhos humanos tende a ser uma religião mais honesta aos seus seguidores. Uma religião que não torne anátema o que não está nos planos do homem cria uma psique mais sadia, mais propensa a aceitar que nem tudo se é como se deseja, que nossas vontades não são maiores que os “caprichos”dos deuses e que apesar de encontrarmos a ordem em abundância no universo, o caos também é igualmente abundante. Se existe uma divindade, que melhor maneira de explicar as pernas tortas, os olhos vesgos, a doença e a loucura do que aceitar que loucura representa também um aspecto da divindade?
Os septões mais esclarecidos são unânimes em afirmar que o politeísmo da fé nos Sete é apenas aparente em que em sua essência é na verdade, uma fé monoteísta. Nada representa isto melhor do que o arco-íris. A luz de um único sol se divide em sete raios coloridos cada um com uma qualidade específica, mas ainda assim, ligados intrinsecamente à luz primordial que os gerou. Por esta razão as coroas dos septões são feitas de cristal, uma referência à luz que se decompõe no espectro de cores que se traduz na diversidade da realidade, sem jamais negar a existência de uma única fonte primeva que a tudo criou.
Este pressuposto de um Criador primordial que se manifesta na diversidade arquetípica está viva e presente nos cultos afro-brasileiros aos Orixás. Uma mente despreparada pode enxergar na umbanda e no candomblé traços do politeísmo pagão Greco-romano, suplantado, ao menos parcialmente, pela fé aparentemente mais simples e esclarecida, do monoteísmo abraâmico.
Contudo, assim como nos Sete de Westeros, o politeísmo dos Orixás é apenas aparente. Os sacerdotes dos Orixás sabem e ensinam que tudo partiu de um Criador Uno, e que este mesmo Uno, delegou sua própria divindade a seres por ele criados, seres divinosem sua essência cada qual irradiando um brilho próprio, uma qualidade específica a quem a humanidade recorre em temos de necessidades também específicas (justiça, amor, força, sabedorias, etc).
Na umbanda, esta referência aos sete raios do arco-iris é tão evidente que também sete é o seu número. Sete são as suas linhas: Oxalá, Iemanjá, Xangô, Ogum, Oxossi, Iansã e Exu (esta divisão que varia conforme o autor, para melhores esclarecimentos, sugiro a leitura da obra de umbanda exotérica de Rubens Sarraceni). O Criador recebe muitos nomes, sendo o mais usual Olodumaré. Este deve ser reverenciado, mas contudo, permanece inalcansável diretamente, somente por meio de seu Orixá, um filho, pode conhecer a vontade do Criador Supremo.
Já no candomblé esta categorização não é tão simples, e é até difícil se afirmar quantos Orixás existem, ainda que os mesmos Sete sejam os reverenciados, surgem outros tão importantes quanto: Oxum, Omulu e Obaluaê, Obá, Iroco, Ifá, Lodum Edé, e tantos outros quanto sejam possíveis representar arquétipos humanos e da natureza.
Se podemos dizer que o culto Orixá é um politeísmo aparente, que revela em seu âmago, um monoteísmo, algo semelhante pode ser dito do monoteísmo abrâamico. Seu aparente monoteísmo não nega a existência de divindades que descendem do Criador primordial.
Tais divindades estão representadas como os Elohim – seres divinos.
A cabala que é parte integrante deste conhecimento explica que o Criador primordial permanece em um lugar fora do tempo e do espaço manifesto, pois é anterior e ulterior a estes. É chamado de o “Imanifesto” (a cosmogonia Tupi-Guarani também se refere de modo semelhante ao Criador primordial como a essência que dá forma e conteúdo a tudo, não tendo porém ele próprio, forma ou conteúdo – ler mais em Tupã Tenondé – Kaká Verá Jecupé).
Para os cabalistas, contudo, o Criador inalcansável pode ser percebido através de suas múltiplas manifestações, representado em sua diversidade pela árvore da vida.
(Princípio semelhante se encontra no politeísmo monista hindu)
Ou seja, para os sacerdotes da cabala, Deus é Um, mas presente em múltiplas manifestações divinas. Esta mesma questão pode ser colocada a partir da frase atribuída a Jesus na cruz: Eli, Eli lama sabatsani – mormente traduzida por Senhor, senhor, porque me abandonaste – Eli, contudo é o plural de El – senhor , ou seja, o mais correto seria Senhores, senhores, porque me abandonastes. Os estudiosos da bíblia diriam que trata-se de um plural majestático  que equivale dizer que o Deus Unitário é tão imenso, que não cabe em apenas um.
Seja como for, a fé dos Sete representa muito bem os arquétipos humanos responsáveis pela qual se dá a interpretação do universo. Se Carl Gustav Jung estiver correto, a clareza com que cada um lida com estes arquétipos em sua vida é que determinará o grau de saúde da psique e de realização do indivíduo.


2 comentários:

  1. Caramba que análise bacana... Você escrevendo sobre a Cabala me leva automaticamente a pensar no Deus de muitas faces que no livro é descrito quase que da mesma maneira que você escreveu, "o Criador inalcansável pode ser percebido através de suas múltiplas manifestações", cultado pelos Homens sem rosto na Casa do Preto e Branco...

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    1. Grato Anne. Ainda estou devendo uma análise do xamanismo pan-teístico da antiga religião. O Afogado e o Deus de muitas faces ficariam de fora... se quiser escrever algo a respeito, publico com prazer. Abraços

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