quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Amansando os Brabos

Muita gente estranhando e até revoltada com o convite feito ao deputado estadual Denilson Segóvia (PEN) para que o mesmo participasse do Festival Yawanawá, realizado este mês de outubro na Aldeia Novas Esperança, Rio Gregório.

A primeira reação é ver no convite um “desrespeito” com os povos indígenas convidar o deputado que recentemente em um rompante fundamentalista e anti-indígena acusou a cultura indígena de “atrasada”, condenado a pedofilia e a embriagues, supostamente presentes nas aldeias (e, na visão do deputado, aparentemente inexistente nas ruas das cidades acreanas).

O deputado-pastor também atacou a religiosidade indígena, denominada de forma genérica como “pajelança”.

Bem, quero dizer aos colegas jornalistas e antropólogos que não compartilho deste ponto de vista.
Conhecendo um pouco da história do povo Yawanawá, vejo que estender o convite ao deputado é mais uma prova da força deste povo, que não teme preconceitos e sabe lidar muito bem como fundamentalistas como Segóvia.

Os Yawanawá já fizeram o favor, para si e para o mundo, de botar para correr os missionários protestantes dos EUA que dominaram o povo por cerca de uma década. Desde então, vêem lutando pelo reavivamento e manutenção de sua cultura original.

A cerimônia espiritual com a ayahuasca, chamada “pajelança” fornece os elementos necessários para o resgate e aperfeiçoamento dos cantos, orações e ideogramas simbólicos (os kenês, utilizados nas pinturas corporais e em adornos), de uso proibido por décadas pelos missionários.

Mas, vejo muito mais que isso por trás do gesto. Lembre-me de uma conversa que tive com o antropólogo Terry Aquino.

Dizia ele, enquanto nós os “brancos”, falávamos de “amansar os brabos”, os índios também adotavam comportamento semelhante. Ou seja, em alguns casos esta aproximação com os “brancos” foi intencional pela parte dos indígenas.

Para eles estavam também “amansando os brabos”, no caso, seringalistas e seus empregados que partiam com toda a fúria em busca das árvores-de-leite, passando por cima de quem estivesse no caminho. Para estes famintos, entregar um veado abatido, poderia lhes aplacar a ira motivada pelo preconceito e pela ignorância e iniciar a partir dali, uma história de contato, mais vantajosa aos indígenas.

Os Yawanawá são prodigiosos nisto, sabem conquistar e cativar pela simpatia, pela simplicidade e pela autenticidade.

Além disso, seus principais líderes são mestres na arte da diplomacia. Não é à toa que os Yawanawá hoje possuem aliados ao redor do mundo, uma aliança que a cada dia torna-se mais forte.

A ignorância do deputado-pastor da “gospelândia” não afeta em nada estas alianças, pelo contrário, somente as fortalece ainda mais, ao fazer o mundo conhecer a mentalidade do parlamentar acreano, em nada diferente aqueles “brabos” chegaram no início do século XX.

Fico imaginando a grande satisfação dos líderes Yawanawá, ao verem o deputado-pastor entre o público presente, inevitavelmente se encantando com os cantos, danças, brincadeiras e lutas ensaiadas. Ouvindo a palavra dos “sheni” (sábios) e dos “shaneihu” (líderes) enquanto queima a fumaça do “sipá” (incenso natural).


Com sua cultura rica e encantadora, os yawanawá sabem como ninguém como é que se faz para “amansar os brabos”.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Pajelança vai bem, obrigado

O recente episódio envolvendo a declaração estapafúrdia do deputado estadual Denilson Segóvia (PEN) de que os costumes indígenas “são culturas destruidoras da moral, da cultura da bebedeira, da pedofilia, da pajelança” têm rendido boas polêmicas na imprensa e nas redes sociais.

Mas não surpreende, é apenas mais uma abobrinha da “Gospelândia”, o estado teocrático em que está se convertendo o Acre. Um lugar onde cada vez mais os argumentos  são menos importantes de que a crença religiosa.

Ainda assim, a declaração do deputado-pastor não poderia ser mais imprópria: nossa própria sociedade acreana é pródiga na bebedeira e na pedofilia.

Quanto à pajelança, vai bem obrigado.

A tradição de mais de cinco mil anos, nascida nestas florestas e não nos desertos estéreis do oriente médio, sobreviveu a séculos de opressão e perseguição e hoje, em torno dela, os povos indígenas voltam a se reorganizar.

Enquanto isso, os limitados padrões ditos “evangélicos” procuram seguir os ditames de um velho testamento, “satanizando” o uso das pinturas corporais, os cantos, as danças, e o uso ritualístico das plantas de poder, entre elas, a ayahuasca.

Em nada disso há a chamada “Boa Nova” anunciada por Jesus Cristo. Há apenas o repetido eco dos velhos preconceitos praticados nas sinagogas dos fariseus.

Entre as diversas organizações missionárias, destaco o trabalho de duas. O CIMI, ligado à Igreja Católica e o COMIM, ligado à Igreja Luterana (e portanto, evangélica). Estas duas organizações há muito abandonaram o conceito ultrapassado de que para “levar a Boa Nova” seja necessário destruir costumes, tradições, enfim, uma cultura.

Ambas as organizações trabalham com a ideia de que levar a "Boa Nova"seja na verdade lutar para que os povos indígenas tenham reconhecidos os seus direitos à terra, à saúde, à educação e principalmente, o direito de terem estes direitos reconhecidos sem que para isso tenham que se adequar aos preconceitos ditos cristãos.

O ataque às culturas indígenas perpetrado pelo deputado-pastor no mesmo tempo em que circula na internet a farsa “Hakani” tem objetivos políticos bem claros.

Demonizar ou ridicularizar a cultura indígena parece ser vital para a sobrevivência de ruralistas e madeireiros, atividades que dependem de constantes avanços sobre áreas de florestas.

Ocorre que, os povos indígenas, além de ocuparem estas áreas preservaram um sistema de relação com o universo que se opõe frontalmente ao pré-capitalismo do agronegócio.
“Evangelizá-los” significa entre outras coisas torná-los mais dóceis para aceitar a destruição de suas áreas naturais, enquanto avançam os tratores e motosserras. Afinal como disse um pastor evangélico aos Yawanawá “índio precisa de deus, e não de terra”.

Enquanto isso, os descendentes de Abraão e Moisés na sua sacro-santa Israel, cuja bandeira é idolatrada nas “Marchas para Jesus” continuam a expulsar palestinos de sua terra natal, mesmo que para isso seja necessário cometer os mais abjetos crimes, entre eles, o infanticídio.

A cultura indígena tem cada vez mais ultrapassado o limite das aldeias e alcançado corações e mentes até mesmo nos grandes centros urbanos do mundo. Talvez isso aconteça por oferecer respostas aos grandes dilemas do terceiro milênio, algo que o calvinismo protestante em que o capitalismo está fundamentado, já se demonstrou incapaz.

A chamada “pajelança” a que o deputado–pastor se refere sem um pingo de conhecimento do assunto, trata, entre outras coisas, de colocar o homem em seu verdadeiro lugar no universo: ao lado da criação e não acima dela.

E talvez essa sim, seja a verdadeira “Boa Nova” de que necessitamos para viver em um mundo de paz, harmonia e abundância para todos.

* Na foto o centenário “Sheni”(sábio, pajé) Vicente Yawaraní, guardião da cultura e da memória da ancestralidade Yawanawá

Leandro Altheman

sábado, 12 de outubro de 2013

Nuke Kenê, Xarakapá *

Compreendo que seja prosaico que o apresentador do principal telejornal da cidade não apenas utilize adornos indígenas, mas como despudoradamente os exiba ao vivo.
Para quem não sabe, não é de hoje que ando com os “kenês” (palavra de amplo significado, mas que designa principalmente os desenhos em padrões que representam a identidade indígena). 
Desde minhas primeiras reportagens, sempre usei os “kenês”, não apenas como forma de me enfeitar, mas sobretudo como forma de homenagear aos primeiros habitantes desta terra.
A diferença é apenas que literalmente “arregacei as mangas”, deixando-os à mostra.
Até o momento não houve repreensão por parte da direção da emissora, que é quem literalmente, paga o meu salário.
No entanto já tem gente reclamando nas redes sociais. No status de um conhecido professor da cidade foi postado: “Imagine se Willian Bonner apresentasse o Jornal Nacional com aquelas pulseiras”.
Bem, o fato é que nem eu sou William Bonner e nem o professor ministra aulas na UFRJ, na USP ou na UNB. Ou, nas palavras de Elza Soares “posso não ser a garota de Ipanema, mas você também não é o Tom Jobim”.
O professor deve saber que a Aldeia Nova Esperança no rio Gregório está bem mais próxima dos estúdios da TV Juruá, do que os transmissores da Rede Globo, no Rio de Janeiro.
Como educador deveria saber que não podemos construir uma realidade melhor para nossa região, forjando-a com base em outra realidade distante, enquanto viramos as costas parta a nossa.
A história dos kenês me lembra a história de uma advogada negra nos EUA, que foi admoestada pelo seus superiores por esbanjar uma bela cabeleira afro. Disseram-na que era por demais “étnico”.
Ora, qualquer educador, minimamente preparado sabe que ditar roupas, costumes, moda, podem se tornar um instrumento de dominação, de padronização, onde não há lugar para o diferente.
Podem argumentar que não sou índio. De fato não sou. Mas carrego no sangue de minhas veias um juramento na qual compartilho uma cosmovisão de mais de cinco mil anos. Com a mesma tranquilidade com que pessoas públicas, da política ou da comunicação, citam versos bíblicos, orgulhosamente exibo os meus kenês.
Em um momento em que jovens brasileiros adotam o nome de algum dos 180 povos indígenas do Brasil como forma de somar-se a luta dos primeiros habitantes, usar os meus “kenês” ao vivo não deixa de ser também um ato político, e por que não dizer, educativo.

*Nosso "Kenê" é bonito