sábado, 12 de julho de 2014

A culpa é de Abrãao ?

Um amigo meu, judeu não-praticante, quando perguntado sobre quem seria de fato o culpado pela crise na Palestina, apontou não para os mísseis do Hamas, mas em uma direção bem mais improvável.

- A culpa é de Abraão!  

Perplexos, perguntamos porque o patriarca que quase imolou vivo seu filho para a honra de seu Deus, seria o culpado da atual crise.

- Ele comeu a empregada e fez um filho com ela, Ismael, da qual descendem todos os árabes. Se ele não tivesse feito isso, não existiriam nem árabes e nem palestinos e todos estariam em paz no oriente.

Para aqueles que gostam de tirar lições morais da bíblia esta seria certamente uma bastante explícita: não coma sua empregada, ou se comer, use camisinha.

Rir é uma forma de tirar o poder aparente das coisas. É exatamente o contrário do que o medo faz: dá poder às ilusões.

Se fosse possível  deixar de lado o tema religioso e fazer um esboço meramente geopolítico da situação minha análise seria simples: O Estado de Israel é a parte mais importante da política do ocidente para obter hegemonia no oriente médio. Uma colônia européia e estadunidense no oriente. É assim que os árabes a encaram.

Mais do que isso, o Estado de Israel tal como se propõe é uma impossibilidade lógica que só pode ser mantida pelas forças das armas e da ajuda externa (exatamente o caráter de uma colônia). Como estado democrático, Israel estaria fadado ao fracasso, uma vez que desde sua criação, a população judaica é minoritária. À força de uma política de estado capaz de deixar  saudades do regime de apartheid na África, os judeus vem conseguindo, artificialmente, manter uma falsa maioria sobre o estado. Para isto, os expedientes utilizados incluem a expulsão de palestinos de suas casas, a proibição de retornarem para suas residências quando se ausentam, a proibição, inclusive, da captação de água da chuva para irrigação. 

Enquanto isso, com o apoio da comunidade judaica internacional, mais e mais colônias vão sendo criadas ao redor de Jerusalém Oriental (Palestina) e na Cisjordânia e Faixa de Gaza ocupada, em claro desrespeito às resoluções da ONU.

O Estado de Israel só pode sobreviver desta maneira: como uma colônia apoiada externamente e com um regime igualmente fundamentalista.

O maior temor dos israelitas é de que uma Israel “democrática” seria progressivamente assediada e fatalmente varrida pela onda do fundamentalismo islâmico.

Esta é justamente uma das razões pela qual o tema religioso não pode ser colocado de lado na questão. E com isso voltamos a Abrãao, “pai” das três maiores religiões do planeta: judaísmo, cristianismo e islamismo.

O judaísmo é a mais antiga, a raiz das outras duas. O Torah Hebraico e o Pentateuco cristão são praticamente coincidentes.

Os hebreus continuam até hoje esperando a vinda do messias que iria restaurar a glória da antiga Israel dos tempos de Davi e Salomão. É exatamente em cima desta promessa que se constrói o sonho do Estado de Israel, portanto a questão religiosa é de fato, indissociável da geopolítica.  
Jesus disse que viria trazer o reino dos céus e recusou a disputa política necessária para a restauração do “Reino de Israel” e exatamente por esse motivo teria sido rejeitado pelos judeus.

Para um judeu, Jesus não passa de um mentiroso. Se ele não veio restaurar Israel, ele não é o filho de Deus e por isso, só pode estar mentindo. A grosso modo é isso.

Quando, séculos mais tarde surge Maomé, o mesmo declara a santidade de todos os profetas do passado, inclusive de Jesus. Neste ponto, a doutrina de Maomé é mais inclusiva que a dos judeus: aceitam Jesus não como Deus, mas como um profeta, um anunciador da palavra. Para os judeus ele não é uma coisa nem outra, se não, apenas um mentiroso.

Os judeus continuam seguindo sua fé monoteísta. Passaram por muitos percalços ao longo da história, o que certamente é uma prova de resistência e lealdade para com sua fé. Mas como eles já são o povo escolhido, significa também que o resto do mundo pouco importa. É uma fé excludente por definição.

Talvez por isso, a frase dita em tom de brincadeira pelo meu amigo judeu, reflita de fato, um pensamento comum entre os judeus mais radicais: os árabes não passam de uma escória que descende de uma “pulada de cerca de Abrãao”. E como filhos ilegítimos não teriam direito à herança alguma, seja ela qual for.  

Já os islâmicos não rejeitam as anteriores doutrinas abraâmicas (judaísmo e cristianismo), mas para eles, o Islã, a verdade revelada pelo profeta, seria uma espécie de “cereja do bolo”, o supra-sumo da revelação divina.

Convenhamos que, se a verdade única repousa em um único Deus, a doutrina islâmica é mais coerente e mais simples que a cristã. Nada de Pai, Filho e Espírito Santo. Um Deus só único e pronto. Santos, profetas, Jesus e a Virgem Maria, todos são dignos de respeito, mas só Alá é Deus. Para eles, tornar-se islâmico significaria retornar ao estado primordial do homem, de submissão à vontade divina. Por isso não falam em conversão, mas em reversão ao Islã. É portanto, inclusiva.
Talvez por isso que seja justamente o islamismo, a fé que mais cresce no mundo.  

Mas o que eu acho realmente incrível nisso tudo é o papel desempenhado pelo cristianismo.

Trata-se de uma fé basicamente grega e latina, ocidental portanto. Para um bom cristão, Jesus teria abolido completamente o caráter racial excludente original do judaísmo. A ideia de um Reino de Israel para escolhidos é substituída pela ideia (mais inclusiva) de um Reino dos Céus, para todos (que o aceitarem). Mas apesar disso, as referências culturais e civilizatórias continuam sendo provenientes daquela parte do mundo.
É por isso, que para um cristão, o senhor é seu "pastor" e não seu "agricultor", ou seu "minerador", ou seu "pescador", ou seu "caçador". É uma questão de referência civilizatória. É por isso que mesmo na megadiversa Amazônia estamos ainda sujeitos e atrelados a referenciais que surgiram na estéril e desértica Palestina. É por isso que dá vontade de rir e chorar ao mesmo tempo quando algum cristão menos esclarecido vem me dizer que "na bíblia não fala nada sobre a ayahuasca" E que portanto, ela só poderia ser "coisa do diabo". 
Bem, também não fala sobre mandioca, açaí ou guaraná, mas conta uma história bem interessante de Moisés conversando com uma planta.

Em outro momento, falarei mais da potencialidade genocida que é tomar referenciais culturais locais por universais e de como isso, entre outras coisas, está de fato, nos levando ao "fim do mundo".   

Ao contrário de árabes e judeus não há para o cristão qualquer tipo de ligação étnica com o patriarca Abrãao. Contudo, seus sacerdotes continuam a proferir que o fiel, na vida após a morte, encontrará paz no “seio de Abrãao”.

Com tanto lugar no universo, querem te mandar logo para o colo do sujeito que começou com essa confusão toda. Muito consolador.

Fico imaginando, Abrãao, como um sujeito normal, honesto, trabalhador, mas que deu uma escorregada com a empregada, como muitos o fazem até hoje e acabam tendo problema com a paternidade ilegítima.
Em algum lugar do universo vão chegando as almas de judeus e palestinos mortos,e Abraão vai ter que dar um jeito de acolher tanto a ismaelitas quanto israelitas.

Homem, ponha-se no lugar de Abrãao.
E além destes, ainda vão chegando as almas dos cristãos, gregos, latinos, ibéricos, germânicos, anglicanos... Talvez comecem a chegar também negros da África e índios das Américas ... todos terão também de ser acolhidos agora no "seio de Abrãao"

Vendo aquele monte de gente procurando o "Seio de Abrãao", sua mulher, Sara, o olha desconfiada imaginando quão longe pode ter ido a infidelidade do marido. Abrãao advinha o seu pensamento e diz:

- Estes não Sarinha, estes não fui eu...eu juro.

Mulher, ponha-se no lugar de Sara. O que ela diria? Eu imagino que seria algo assim:

-E eles não tem pai, não? Vão procurar o pai de vocês!

(Me diz, se não daria uma bela comédia?)

Mas eles não podem encontrar o pai deles, porque os obrigaram a esquecer seus próprios ancestrais e adotar uma ancestralidade alheia.

Seio de Abrãao!

Se realmente existe vida após a morte, o “seio de Abraão” seria o último lugar que eu gostaria de ir.  

Mais tarde eu continuo falando sobre o assunto... em: O Apocalipse nosso de cada dia... 

Um comentário:

  1. Ótimo texto, meu amigo. Textos assim devem ser arrumados em brochura para subsistirem um pouco mais. Parabéns.

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