sexta-feira, 18 de março de 2016

O Chapéu de Duas Cores

Nestes dias em que assistimos ao acirramento político, achei que permaneceria intocável aqui no meu distante buritizal, lá onde o vento faz a curva.

Enganei-me. Primeiro porque é quase impossível assistir impassível a tantas movimentações, que querendo ou não, em algum momento extrapolam nossas razões e atingem o âmago de nossos sentimentos.

Já há algum tempo, por razões bastante conhecidas por aqueles que seguem minhas publicações, havia deixado de lado qualquer apoio político ao PT e à Lula. Em resumo: compartilho com a sensação de boa parte das pessoas ligadas às causas ambientais e indígenas, de que nossa pauta foi completamente rifada pelo atual governo em troca de apoios substanciais de setores como: agronegócio, empreiteiras, bancada teocrática e outros. Isso para mim foi motivo suficiente para retirar o apoio, que até então, prestei ao governo até pelo menos metade do primeiro mandato de Dilma.

Fato é que, a súbita explosão de comoções geradas pela quebra do sigilo telefônico de Lula e Dilma, acabou tocando aquele emocional, lá no fundo, trazendo à tona uma ojeriza acumulada em décadas de percepção de que a Justiça, que hoje ampara aqueles que querem ver o fim do governo Dilma, de Lula, do PT e se possível de toda esquerda, em verdade sempre foi um colegiado de privilégios profundamente empregado de valores do Brasil Colônia. São as ‘excelências’ togadas arrotando direitos tão fora da realidade quanto seus privilégios permitem.

Minha decisão de não ir às ruas, nem de vermelho PT e nem de amarelo CBF não é ‘muro’, mas resultado de um sentimento que somente têm se fortalecido nos últimos dias.
Não me resta dúvida de que Lula, Dilma e o PT, ainda que por meios questionáveis, colhem exatamente o que plantaram. Ou acharam eles que as alianças espúrias com o setor privado sairiam ‘de graça’?
A questão é: o que está sendo semeado? O que vejo é ódio e intolerância. O que as passeatas verde-amarelas transmitem é uma noção de ‘ordem’ que parece advinda de aulinhas de educação Moral e Cívica, e que sim, contém elementos proto-fascistas.

Dito isso, é preciso fazer a ressalva de que nem todo mundo que está de vermelho hoje ‘apoia a corrupção’, do mesmo modo que nem todos que estão de amarelo são fascistas ou proto-fascistas. Pessoas chegam a determinadas conclusões baseadas em aspectos objetivos, mas muito também, por razões subjetivas que as levaram a construir determinada escolha. Se não respeitarmos as escolhas de cada pessoa, tampouco respeitaremos a pessoa por trás delas.
Tenho me rendido cada vez mais à concepção de que tudo o que temos no final das contas, são pontos de vista, já que nossa visão da realidade, por melhor que seja, sempre será apenas um recorte ínfimo da realidade total.
Encerro esse texto, com o conto africano do Chapéu de Duas Cores, que explica, com muita sabedoria, o que busquei expressar através desse texto.

O CHAPÉU DE DUAS CORES

Contavam os mais-velhos que, na Aldeia de Ajalá, havia dois irmãos muito unidos. Eles jamais tinham brigado entre si. Nunca tinham se aborrecido um com o outro. A fama daquela amizade corria as aldeias e todo mundo comentava, fazendo disso admiração geral.
Um dia, Exu andava por aquele lugar e ouviu comentários sobre o fato. Então, ele resolveu fazer um teste sobre a fortaleza daquela amizade. Descobriu os dois irmãos trabalhando num campo, que era dividido ao meio por uma estrada estreita. E eles trabalhavam cantando, cortando o mato com facões bem amolados, conversando sobre diversos assuntos. Aí, Exu pôs na cabeça um chapéu pintado de vermelho e preto, sendo que de cada lado só se via uma única cor.

Então Exu passou pela estrada, entre os dois irmãos e os saudou, dizendo:

— Bom dia, irmãos unidos!

E os irmãos responderam a Exu em uma só voz. Mas Exu passou por entre eles, sempre olhando para frente e seguiu adiante, até desaparecer na curva da estrada. Aí, um dos irmãos perguntou ao outro:
— Quem era aquele homem de chapéu vermelho?
Ao que o outro respondeu:
— Mentira sua! O homem usava um chapéu preto...
O irmão que viu o homem de chapéu vermelho se sentiu ofendido e, pela primeira vez, mostrando-se aborrecido, devolveu a ofensa. E o que tinha visto o homem de chapéu preto ficou aborrecido também. Daí, eles começaram a discutir, num desentendimento sem igual. A raiva cresceu tanto, que eles terminaram se agredindo com palavras. As ofensas trocadas se agravaram e eles terminaram avançando um sobre o outro, armados de facão. Brigaram tanto que se mataram. E porque eles não tinham herdeiros, o campo ficou entregue às feras e às ervas daninhas.
É por isso que, até hoje, nas aldeias, os mais-velhos ainda avisam:
— Se lembre do chapéu de duas cores: Nem tudo é aquilo que parece ser...

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