domingo, 23 de outubro de 2016

O Acre não é Ibiza

Em Cruzeiro do Sul chegam notícias da II Conferência Internacional da Ayahuasca que acontece em Rio Branco-AC entre os dias 17 e 22 de outubro.
O primeiro encontro foi há dois anos em Ibiza na Espanha, quando então os organizadores chegaram a declarar que Ibiza teria se tornado a ‘capital mundial da ayahuasca’. Naquela ocasião, o caráter do encontro parece ter assumido uma forma ‘new age’, na turística ilha dos prazeres, das praias de nudismo e das boates embaladas ao som tecno.
Desde aquela ocasião, já percebeu-se a necessidade de realizar este encontro em terras amazônicas, região de origem da medicina.
O encontro no Acre, contempla a terra de origem das chamadas religiões ayahuasqueiras. Ao menos duas delas tem sua origem na capital acreana: o Santo Daime, em sua diferentes vertentes, e a Barquinha. Já a UDV tem sua origem em Porto Velho-RO.
Mas a maior surpresa, ou talvez, não tão surpresa assim, esteja sendo a participação das lideranças indígenas do Acre.
É justamente aí que surge a maior divergência dos pontos de vista entre os povos indígenas e as religiões ayahuasqueiras. As religiões buscam legitimar o seu uso urbano e a expansão para locais tão distantes no planeta quanto a fria Noruega ou o desértico Israel e com isso, a compreendem como patrimônio da humanidade.
Os povos indígenas, ao seu turno, entendem a declaração como uma apropriação de um conhecimento que é seu por origem e que portanto, tratando-se de patrimônio dos povos originários.
É a esse respeito que pretendo tecer considerações nesse artigo.
A expansão do uso da ayahuasca
Pesquisas apontam como a origem do uso da ayahuasca o vale do rio Napo, afluente do Marañon, entre povos de língua Kichua – uma língua aparentada do quéchua falado na montanha- em território hoje pertencente ao Equador.
Desde então, o uso da ayahuasca, aqui compreendido como o cipó Banisteriopsis caapi, passou por um processo de expansão e assimilação pelos povos nativos da Amazônia sub-andina.
Seria mais recente, portanto, o uso da ayahuasca nos vales do Putumayo, associado à chaliponga, e mais recente ainda no Ucayalli (Peru), já associado à chacrona (Psicitrya viridis).
A expansão teria continuado, até adentrar em terras hoje brasileiras e ser gradualmente assimilado pelas populações de seringueiros que com sua própria conotação religiosa deram origem às chamadas religiões ayahuasqueiras. A partir da institucionalização religiosa, o uso da ayahuasca encontrou seu caminho junto aos grandes centros urbanos do Brasil e a partir daí, ganhou o mundo.
Medicina ou religião
Pode-se dizer que a tendência mais forte dentro do contexto de uso da ayahuasca é afirma-la cada vez mais como uma ‘religião’. O suporte legal dado pela constituição brasileira à liberdade religiosa, já seria justificativa pragmática suficiente para enquadrá-la como ‘uso religioso’.
Mas, como seria o uso tradicional da ayahuasca entre os povos nativos? É possível enquadrá-la como ‘religião’?
O mais apropriado entre os povos nativos tem sido declará-la como ‘medicina’, que em alguns locais é quase um sinônimo para a ayahuasca. Parece mesmo que o uso mais corrente da ayahuasca tenha sido realmente para a cura e obtenção de saúde entre os povos nativos.
Abro aqui um parêntese para lembrar que em muitas culturas, não necessariamente os ‘pacientes’ façam uso da bebida, mas sim os ‘pajés’, que a usam como meio de prospecção da doença. A ‘cura’ efetivamente acontece a partir do tratamento, normalmente sob a forma de uma ‘dieta’ com a(s) planta(s), indicada(s) pela ayahuasca.
Há ainda o papel desempenhado pelas canções/orações como parte do processo de cura. Ou seja, esse tratamento está diretamente vinculado ao um sistema de conhecimento e/ou um conjunto de crenças místicas- uma cosmovisão- compartilhados por paciente e curador. Ou seja, em certa medida, é também um ato de fé.
Pensando ainda no contexto místico/religioso, é razoável supor que na medida em que houve a expansão deste conhecimento, seu uso fosse sendo adequado aos costumes e conjunto de crenças de cada povo, em uma dinâmica cultural própria dos povos indígenas antes da chegada do homem branco.
Nesse sentido, o uso religioso pelo homem branco, parece ser, de certo modo, a continuidade desse processo de expansão e adequação a essas novas realidades.
Legitimidade do uso
O enquadramento parece ser uma necessidade das religiões institucionalizadas, que compreensivelmente, querem assim evitar a banalização do uso da ayahuasca.
Ocorre que, se esse enquadramento carece de legitimidade se nele estiverem excluídos os direitos dos povos originários.
Para uma das religiões ayahuasqueiras isso pode ser um problema, já que um de seus fundamentos doutrinários pressupõe a negação da origem nativa da ayahuasca. Refiro-me especificamente à UDV, onde o uso da bebida é fundamentado por meio do mito de que o conhecimento do uso da ayahuasca tenha sido legado pelo lendário rei Salomão. A interpretação fundamentalista do mito da UDV leva à conclusão de que os povos indígenas não possuem legitimidade para o uso da ayahuasca. Seriam, em suas próprias palavras, apenas ‘curiosos’: sem conhecimento verdadeiro.
A afirmação tem colocado algumas lideranças em ‘pé de guerra’ denunciando a apropriação de seus conhecimentos tradicionais.
Já no Santo Daime, essa problemática parece ser mais diluída. Mestre Irineu teria recebido a Santa Doutrina de Nossa senhora da Conceição, mas não há referência clara sobre o uso nativo. Na prática, o Santo Daime tem sido mais permeável à presença indígena em suas igrejas, inclusive como convidados a entoarem seus cantos tradicionais.
Novos Aprendizes
Há ainda um novo contexto que surge como complicador dos enquadramentos propostos para o uso da ayahuasca. Ocorre que, um número cada vez maior de pessoas, tem buscado fazer o uso da ayahuasca fora do contexto das religiões institucionalizadas, mas dentro do uso chamado ‘tradicional’ dos povos indígenas.
Pode-se questionar quanto de ‘tradicional’ efetivamente existe dentro do uso indígena, já que ao menos no Acre, estes povos tem sido também influenciados pelas religiões, especialmente o Santo Daime, no uso que fazem da medicina das aldeias.
Surgem os jovens com violões, maracás e tambores, onde antes havia somente a voz do pajé. Músicas tradicionais recebem melodias que a fazem se assemelhar aos hinos do daime, ou mesmo aos pontos da umbanda.
Mas e esse não-índio, que participa das cerimônias na aldeia, que aprende cantos tradicionais e que possivelmente, irá também levar o formato de cerimônia das aldeias para outros centros urbanos?
Hoje, não podendo enquadrá-lo em outra categoria, esse aprendiz recebe o pejorativo rótulo de ’turista’.
Tampouco os povos indígenas parecem estar preparados (ou interessados) para fazer deste ‘aprendiz’, um reprodutor fidedigno daquilo que são os conhecimentos tradicionais de seu povo e dos ensinamentos dos seus mestres.
A dinâmica cultural, contudo, é viva, e não se prende a rótulos e enquadramentos. O processo de expansão de uso da ayahuasca irá continuar independente do que decidam os congressos. A ayahuasca irá sempre despertar o interesse de pessoas em locais tão longínquos como a Rússia ou o Japão. Para estas pessoas, ao menos uma vez em suas vidas, talvez seja necessário uma imersão na Floresta, em busca de conhecer nas raízes, a planta que a essa altura, já terá transformado suas vidas e suas percepções sobre a realidade.

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