domingo, 15 de outubro de 2017

Vicente Yawarani: uma singela homenagem a um professor da floresta

Uma escola que gira

No centro da roda do mariri está Vicente Yawarani, ou simplesmente, Yawá. Crianças, jovens e adultos, homens e mulheres giram ao seu redor.
Yawá entoa os versos de um saiti – músicas tradicionais que são entoadas em celebrações. São como o ‘cancioneiro popular’ do povo Yawánawá. Os versos cantados por Yawá são repetidos pela roda. Yawá parece repeti-los a quantidade de vezes suficientes para que os que estão à sua volta os cantem com perfeição.
A madrugada já vai longe, o sereno cai sobre o terreiro, os corpos já estão cansados de um dia de brincadeiras de mais um festival cultural. Mas ainda assim, Yawá, o mais velho está lá, lançando seu desafio aos mais jovens para que o acompanhem.  
É quando me dou conta: trata-se uma escola. Só que ao invés das carteiras escolares dispostas uma atrás da outra, com o professor na frente, temos uma sala de aula que gira em volta do professor. É quando me dou conta também, da ‘pedagogia’ de Yawá: ele não se cansa de repetir, para diferentes gerações, o mesmo ensinamento.
Certamente que, como em nossa cultura, há níveis e também degraus, mas aqui  eles giram, como círculos em uma espiral onde os saberes primários estão sempre a serem repetidos.
Aquilo é o maternal, o ensino fundamental, mas é também o médio e o superior, porque todos estão na roda. E Yawá, o maior professor vivo do povo Yawanawá é quem conduz o mariri: o primeiro grau da escola da pedagogia Yawanawá.

Sábio e Erudito


Com seus cerca de cem anos, Yawarani encarna com perfeição a figura de um sábio. Um sábio da floresta que assistiu ao contato de seu povo com o homem branco. Que viu a transformação de seu povo em seringueiros, agricultores, mateiros, tudo para fornecer os itens de que o patrão necessitava para manter o sistema seringalista funcionando.
Yawá assistiu à chegada dos missionários evangélicos. Suas pregações. O apogeu, declínio e queda de um modo de pensar que acreditou um dia poder substituir o pensamento Yawanawá por outro.
Plantio, colheitas, caçadas, pescarias. Casamentos, mortes, nascimentos. Guerras e Alianças. Isso tudo, e com certeza ainda mais foi visto, pelos olhos de quem viu já um século passar diante de sua vida. A vida, o pensar a vida, o viver a vida, o sobreviver e ainda fazer sobrar  alegria diante destes mesmos olhos é o que se pode chamar SABEDORIA.
Não resta dúvida: Yawá é um sábio. Quem duvida, que o veja sorrir. Em sua língua, sheni.
Mas Yawá não é APENAS um sábio.
Yawá é também um ERUDITO.
Em nossa cultura, valorizamos o conhecimento daqueles que se debruçam sobre os textos dos antigos, de Sócrates e Aristóteles, de Camões e de Cervantes e de tantos e inumeráveis outros que fazem a grandeza de nossa civilização.
Ocorre que Yawá é também  ele um guardião do conhecimento dos antigos. Que não está em textos de uma biblioteca, mas em canções, em orações, em histórias que formam o arcabouço do conhecimento cultural do povo Yawanawá, que certamente, dialoga com um contexto mais amplos dos povos Pano, que por sua vez dialoga com toda história do povoamento da Amazônia e dos vizinhos Andes, enfim, do continente sulamericano.   
As orações do shuintya Yawá são enunciadas em uma forma culta do Yawanawá, diferente da língua usada no cotidiano. Shuintya é rezador. A forma própria da oração diz que não basta saber enunciá-las à perfeição, é preciso ter o poder, a autoridade de dizê-las com efeito. Conhecimento e poder andam juntos, mas não são a mesma coisa.
Mas Yawá diz ainda sobre tais orações: ‘elas não são minhas, pertencem aos antigos.’  Ou seja, Yawá refere-se a um conhecimento cultural de seu povo, fruto da elaboração de gerações.

Um mestre além de si mesmo

Acredito que um mestre de verdade seja alguém que nos faça olhar à nossa volta, olhar em nós mesmos e descobrir por si só aquilo que realmente importa.
Nesse sentido, é certo dizer que a escola de Yawá, é um mestre ainda maior. Ela está na Floresta, eterna fonte de aprendizagem, nas plantas, nos animais. Isso pode parecer poético e impreciso, mas é assim que é.
Andar na Floresta, por exemplo, exige uma série de habilidades: motoras, sensitivas e cognitivas. É educação física e também geografia. É biologia, mas é também história e literatura, já que animais e plantas não fazem parte apenas de um mundo ‘natural’. São parte integrante da cultura, já que há histórias, músicas e pinturas que lhes fazem referência.
Buscar compreender a pedagogia (e a epistemologia) presente no cotidiano Yawanawá seria  tarefa de especialistas, impossível de abarcar num breve texto desta natureza. Mas cumpre ainda apontar o papel das plantas enquanto professoras, e ainda dos sonhos por elas engendrados. Talvez aí, como em poucos lugares, vejamos explícito o conceito de a educação e o aprendizado, mais do que tudo, como uma postura diante da vida.

E ainda assim, em meio a uma Floresta repleta de saberes, onde animais falam e cantam e as plantas ensinam a SER, sobressai-se a figura de Vicente Yawarani, o sábio erudito do Alto Rio Gregório.

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