sábado, 17 de março de 2012

Dançarino nas Teias da Realidade IV

Olho ao meu redor e reconheço a loucura do mundo.

Estou agora em um camarim de teatro. Os atores se preparam para entrar em cena. Uma atriz se maquía em frente ao espelho, enquanto outra, se afasta em direção ao palco.
Estou bastante nervoso, pois ainda não sei qual o papel que devo desempenhar.

Entra no camarote um ator, trajando um terno verde e um chapéu tipicamente irlandês. Ele caminha como se dançasse sobre uma corda bamba. Balança seu corpo de um lado para o outro, revelando com seus gestos, a fragilidade daquilo que parece sólido.

Seus gestos elegantes e ao mesmo tempo patéticos, me divertem por alguns minutos enquanto ele caminha daquele jeito trôpego.

Ele chega até mim e faz uma mesura com o seu chapéu, tirando-o da cabeça. Com o chapéu na mão, ele começa a falar:

- Sabe, estes índios são mesmo muito inteligentes... Você sabe porquê?

- Não...porque?

- ... Você se lembra de como chegou até aqui?

- Não, não me lembro!

- Então é porque você deve estar sonhando... eu contudo, me lembro de cada passo que caminhei para chegar até aqui e estar falando com você, aqui neste camarim. O que significa que provavelmente eu não estou sonhando!

- E como isto é possível, eu estar sonhando e você não? Se eu estou sonhando, você é apenas parte de meu sonho!

- Sim, você está certo. Contudo eu me lembro de cada passo, o que significa que esta deve ser a minha realidade, o que faz de você, parte de minha realidade, enquanto eu, sou apenas parte de seu sonho... Estranho, não?

Perplexo, fiquei em silêncio por alguns segundos. O "ator irlandês" logo emendou:

- O que nos remete à minha primeira pergunta. Sobre porque os índios são inteligentes.

Eles são inteligentes pois souberam desde o princípio que o que cria a noção de realidade é a continuidade, ou seja, a memória. Por isto, os vasos e utensílios domésticos, com seus inocentes desenhos não servem apenas para carregar água, mas para carregar memórias específicas que podem ser acessadas.

Com o treinamento adequado, eles podem não apenas caminhar sobre uma única linha de tempo e espaço, mas pular de uma para outra, literalmente dançando entre as teias que compõem o tecido da realidade.

- O que me leva a este chapéu...

Tirou o chapéu e examinou-o o fundo, como se tivesse por ele o mesmo carinho que por um animal de estimação.

- Bem, não são apenas desenhos que podem criar estes efeitos na memória. Sons e cheiros também. Eu particularmente gosto dos cheiros...

Tirou um pequeno frasco de um perfume e espalhou-o pela parte de dentro do chapéu. Em seguida pegou um outro frasco com um conteúdo esverdeado e também passou-o.

- Sabe, os cheiros mais poderosos para mexer com nossas memórias, são justamente aqueles que não têm cheiro de nada... tome, é para você!

Deu-me o seu chapéu.

Coloquei-o sobre a cabeça e percebi como se tivessem sido pingadas em minhas juntas gotas daquele mesmo perfume. Minhas articulações ficaram soltas e meu corpo começou a dançar quase que involuntariamente, como se recobrasse a memória de já ter algum dia dançado aquela mesma canção. Lembrei de cada passo que havia dado para chegar até ali, o que fazia daquele sonho, minha realidade.

De posse da minha memória, entro no palco e interpreto o meu papel como se nunca tivesse feito antes qualquer outra coisa na vida.

***

Para ler os episódios anteriores clique aqui:

Dançarino nas Teias da Realidade

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